Fania e Angela Davis abordam novo tipo de ativismo dos direitos civis
Logo que concluí minha certificação como instrutora de mindfulness, muitas ideias sobre a utilização da prática me vieram a cabeça. Estava inquieta, pois gostaria de vinculá-la com as formações que tinha feito até o momento e gostaria de utilizá-la para melhorar a saúde e as relações sociais. Foi quando tomei conhecimento de que a grande ativista da contracultura Angela Davis e sua irmã Fania Davis, estavam alinhadas a um tipo de ativismo pelos direitos civis que contempla o autocuidado e as práticas mente-corpo. Então, eu pensei “ Eureka” é isso que quero fazer, contribuir para imprimir o autocuidado no ativismo social. Leia a entrevista abaixo e descubra uma nova perspectiva para o autocuidado. Boa leitura!
“Autocuidado, cura, atenção ao corpo e a dimensão espiritual – tudo isto agora faz parte das lutas radicais por justiça social.”
Angela e Fania Davis (YES! Fotografia de Kristin Little)
Angela Davis e sua irmã Fania Davis já atuavam pela justiça social bem antes de muitos dos atuais ativistas terem nascido. Desde a sua infância na cidade Birmingham, no Estado do Alabama, marcada pela segregação racial, onde seus amigos foram vítimas do atentado a bomba da Igreja Batista da Rua 16, passando pela associação ao Partido dos Panteras Negras e ao Partido Comunista, até sua atuação contra o complexo prisional industrial, suas vidas estiveram centradas no incremento dos direitos da população afro-americana.
Em 1969, Angela Davis foi demitida do seu cargo docente na UCLA [Universidade da Califórnia em Los Angeles] por ter se afiliado ao Partido Comunista. Mais tarde, ela foi acusada de desempenhar um papel de apoio ao sequestro de um tribunal que resultou em quatro mortes. A campanha internacional para assegurar sua soltura da prisão foi liderada, entre outros, por sua irmã Fania. Angela acabou sendo absolvida e continua a advogar a reforma da justiça criminal.
Inspirada pelos advogados de defesa de Angela, Fania se tornou advogada de direitos civis no final da década de 1970 e praticou esse ofício até meados da década de 1990, quando se inscreveu em um programa de estudos indígenas no Instituto da Califórnia de Estudos Integrais e estudou com um curandeiro zulu na África do Sul. Após retornar, ela fundou a Restorative Justice for Oakland Youth [Justiça Restauradora para a Juventude de Oakland]. Hoje ela reivindica um processo de busca da verdade e de reconciliação focado no histórico trauma racial que continua a assombrar os Estados Unidos.
Sarah van Gelder: Vocês duas foram ativistas desde jovens. Eu gostaria de saber como esse ativismo se originou da sua vida familiar e como falavam sobre ele entre vocês duas.
Fania Davis: Quando eu estava começando a engatinhar, nossa família se mudou para um bairro em que todos eram brancos. Aquele bairro ficou conhecido como Dynamite Hill [Lomba da Dinamite] porque as famílias negras que se mudavam para lá eram hostilizadas pela Ku Klux Klan. Nossa casa nunca foi bombardeada, mas casas próximas de nós foram.
Angela Davis: Fania provavelmente não tem idade para se lembrar disso, mas eu lembro que quando sons estranhos eram ouvidos do lado de fora, meu pai deixava o quarto de dormir, pegava sua arma da gaveta e saía da casa para verificar se a Ku Klux Klan não tinha plantado uma bomba nos arbustos próximos. Isso fazia parte da nossa rotina diária.
Muitas pessoas supõem que o atentado a bomba da Igreja Batista da Rua 16 foi um evento único, mas de fato explosões de bombas e incêndios aconteciam o tempo todo. Quando eu tinha onze anos de idade e Fania sete, a igreja que frequentávamos, a Primeiro Igreja Congregacional, foi incendiada. Eu era membro de um grupo de discussão inter-racial que se reunia ali e a igreja foi incendiada por causa desse grupo.
Nós crescemos em uma atmosfera de terror. E hoje, em vista de toda a discussão que é feita sobre o terror, penso que é importante reconhecer que houve regimes de terror durante todo o século XX.
Sarah: Onde vocês estavam quando ficaram sabendo que aconteceu o atentado a bomba da Igreja Batista da Rua 16?
Fania: Eu estava frequentado o colégio [ensino médio] em Glen Ridge, New Jersey. E eu não peguei nada de ninguém. Eu estava o tempo todo falando de James Baldwin ou Malcolm X e sempre levantando questões referentes a equidade e justiça social.
Eu ouvi a respeito do atentado a bomba quando minha mãe me contou que a mãe de uma das meninas ligou para ela – por serem boas amigas – e disse: “Houve a explosão de uma bomba na igreja. Vem comigo e vamos buscar a Carole, porque ela está na igreja hoje”. Elas foram de carro até lá juntas e ela descobriu que não havia mais Carole, ela se fora… não havia mais ninguém lá. Penso que foi isso que alimentou esse fogo, o fogo da raiva e me encheu de determinação para combater a injustiça com toda a energia e força de que eu era capaz.
Sarah: Vocês podem dizer mais alguma coisa sobre como foi sua vida cotidiana na fase de crescimento?
Angela: Fomos a escolas, bibliotecas e igrejas segregadas. Fomos onde tudo era segregado!
Fania: É claro que, de certo modo, foi bom termos sido uma comunidade negra muito coesa. Quando saíamos de nossas casas e comunidades, a mensagem social era que você é inferior: você não merece ir a esse parque de diversões por causa de sua cor nem merece comer quando vai ao centro fazer compras. Você deve sentar-se no fundo do ônibus. Ao mesmo tempo, em casa, nossa mãe sempre nos disse: “Não deem ouvidos ao que eles dizem! Jamais deixem alguém dizer-lhes que vocês valem menos do que eles”. E foi assim que – já como menina de 10 anos – simplesmente entrava nos banheiros para brancos e bebia água das fontes para brancos, porque desde tenra idade eu tinha um senso muito aguçado para o certo e o errado. Minha mãe estava fazendo compras em algum outro lugar da loja e, antes que ela se desse conta, a polícia tinha sido chamada.
Sarah: Vamos dar um salto para frente até o momento em que ficou claro que você, Angela, necessitaria de todo um movimento em sua defesa. E você, Fania, acabou passando anos defendendo-a.
Fania: Sim, cerca de dois anos.
Angela: Em 1969, fui demitida de um cargo docente no departamento de filosofia da UCLA. Foi ali que começaram todos os problemas e recebia ameaças todo santo dia. Eu fui atacada apenas por ter me afiliado ao Partido Comunista.
Fania: Naquela época, Angela estava muito envolvida no ativismo a favor do direitos prisionais, liderando manifestações por todo o Estado. E então ela esteve em todas as manchetes: “Comunista demitida da docência na UCLA”, você sabe, “Poder Negro Radical”.
Angela: Então, em agosto de 1970, fui acusada de homicídio, sequestro e conspiração. Por isso, tive de ir para a clandestinidade. Fui para Chicago, depois para Nova Iorque e a Flórida e, por fim, foi presa em Nova Iorque em outubro. Foi na época em que eu estava clandestina que a campanha realmente começou a tomar forma.
Sarah: Então, Fania, quando foi que você dirigiu seu foco para o apoio à causa de sua irmã?
Fania: Na véspera do dia em que deixei Cuba, fiquei sabendo que ela havia sido presa. Assim, em vez de ir para casa na Califórnia, fui imediatamente até onde Angela estava, na Casa de Detenção Feminina em Greenwich Village.
Angela: Todos os meus amigos e camaradas começaram a montar a campanha. Assim que fui presa e extraditada, todos eles se deslocaram até a área da Baía [da cidade de São Francisco, Califórnia]. Éramos ativas no Partido Comunista e, você sabe, pode-se fazer as críticas que se quiser ao Partido Comunista, mas podíamos ir a qualquer lugar do mundo e encontrar pessoas com as quais tínhamos alguma afinidade e as pessoas nos acolhiam em suas casas. O Partido foi o núcleo da organização pela minha soltura e o movimento foi assumido pelos estudantes no campus e pelas pessoas da igreja. Isso aconteceu em todo o mundo. Toda vez que visito um lugar pela primeira vez, sempre me encontro na situação de ter de agradecer a pessoas que vêm até mim e dizem: “Estivemos engajados no seu caso”.
Sarah: Você sabia que estava ocorrendo esse tipo de apoio?
Angela: Eu sabia e não sabia. Eu sabia abstratamente, mas Fania foi quem viajou e de fato testemunhou esse apoio.
Fania: Sim, eu discursei para 60.000 pessoas na França e 20.000 em Roma, Londres e na Alemanha Ocidental e Oriental, por todo o mundo e presenciei esse movimento maciço para libertá-la.
Angela: Foi uma época estimulante porque as pessoas realmente acreditavam que uma mudança revolucionária era possível. Havia países se tornando independentes e os movimentos de libertação estavam em andamento e havia essa esperança em todo o mundo de que conseguiríamos acabar com o capitalismo. E penso que fui afortunada por ter me destacado em um momento conjuntural de toda uma série de coisas.
Sarah: Desde aquele tempo sua ação se concentrou no sistema da justiça criminal. Vocês duas são abolicionistas da prisão?
Angela: Oh, totalmente. E é estimulante ver que a noção de abolição foi abraçada não só como uma maneira de tratar a superlotação dos cárceres, mas também como uma maneira de imaginar uma sociedade diferente que não mais está baseada em esforços repressivos de violência e encarceramento. A abolição tem origem no trabalho de W. E. B. Du Bois com a ideia de que a escravidão como tal foi desmantelada, mas nunca foram desenvolvidos os meios de lidar com as consequências dessa instituição. No final da década de 1800, houve um breve período de reconstrução radical que exibe uma prévia do que poderia ter sido. As pessoas negras foram capazes de gerar algum poder econômico, inaugurar jornais e todo tipo de negócios. Porém, tudo isso foi destruído com a inversão da reconstrução e a ascensão da Ku Klux Klan na década de 1880.
Fania: Sim, nós abolimos a instituição da escravidão, mas ela foi então substituída pela meação, por Jim Crow, linchamentos, contratação de presidiários. A essência da violência e do trauma raciais que vimos na instituição da escravidão e nas instituições subsequentes continua hoje na forma de encarceramento em massa e práticas policiais letais.
YES! Photo by Kristin Little
Angela: Estamos retomando formas de luta que nos ligam aos abolicionistas que lutaram contra a escravidão, e as instituições da prisão e da pena de morte são os exemplos mais óbvios das maneiras como a escravidão tem continuado a assombrar nossa sociedade. Não se trata, portanto, só de livrar-se do encarceramento em massa, embora isso seja importante. Trata-se de transformar a sociedade inteira.
Sarah: Como a justiça restauradora poderia contribuir para essa transformação?
Fania: Muita gente acha que a justiça restaurativa só se aplica ao dano interpessoal – é de fato é muito exitosa nisso. Porém, o modelo da verdade e reconciliação deveria ser aplicado também ao dano em massa – visando curar as feridas da violência estrutural. Vimos isso funcionar em cerca de 40 nações diferentes; o caso mais conhecido naturalmente é o da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul.
Na África do Sul, a comissão convidou vítimas do apartheid como testemunhas e, pela primeira vez, elas contaram suas histórias publicamente. O que elas contaram estava em todas as estações de rádio, em todos os jornais, em todos os programas de televisão, de modo que as pessoas chegavam em casa, sintonizavam e ficavam sabendo coisas sobre o apartheid de que jamais tinham ouvido falar. Houve uma intensa discussão nacional e as pessoas prejudicadas se sentiram compensadas de alguma maneira. Esse tipo de coisa pode acontecer aqui também, por meio de um processo de verdade e reconciliação. Para complementar esse tipo de estrutura de comissão de audiência, poderia haver círculos em nível local – círculos entre, digamos, as pessoas que foram vítimas da violência e as pessoas que lhes causaram dano.
Angela: Como poderia ser responsabilizado alguém representando o Estado que cometeu indizíveis atos de violência? Se simplesmente nos basearmos na velha forma de trancar na prisão ou aplicar a pena de morte, penso que acabaremos reproduzindo o mesmo processo que estamos tentando questionar. Assim, será que poderíamos falar sobre justiça restaurativa em termos mais amplos? Muitas campanhas inicialmente reivindicaram que o policial fosse processado, mas parece-me que podemos aprender com a justiça restaurativa e pensar em alternativas.
Sarah: Fania, quando conversamos no ano passado você me contou que sua atuação na justiça restaurativa de fato tomou forma depois de ter passado por um período de transição pessoal em meados da década de 1990, quando você decidiu tomar outro rumo.
Fania: Cheguei ao ponto de perder o equilíbrio devido a toda a raiva, a luta, devido a um modo hipermasculino de ser que eu tive de adotar para ser uma advogada de sucesso. E também devido a 30 anos da postura hiperagressiva que fui compelida a assumir como ativista – de ser contra isso e contra aquilo e de combater isso e combater aquilo. Intuitivamente eu percebi que precisava de uma infusão de energias mais femininas, espirituais, criativas e curativas para recuperar meu equilíbrio.
Sarah: Como isso afetou a relação de vocês como irmãs?
Fania: Minha irmã e eu tivemos um período – bem no meio disso tudo – em que nossas relações ficaram abaladas por quase um ano, devido em parte a essa transformação. Foi muito doloroso. Ao mesmo tempo, finalmente entendi que era preciso que isso acontecesse porque eu estava forjando minha própria identidade separada da dela. Eu sempre tinha sido a irmãzinha que seguiu direitinho os seus passos. Sim, mas agora nos reaproximamos. E ela está se tornando mais espiritual.
Angela: Penso que nossas concepções a respeito do que deve ser considerado radical mudaram com o passar do tempo. Autocuidado, cura, atenção ao corpo e a dimensão espiritual – tudo isto agora faz parte das lutas radicais por justiça social. Isso não era assim antes. Penso que agora estamos refletindo profundamente sobre a conexão entre vida interior e o que acontece no mundo social. Inclusive aqueles que lutam contra a violência do Estado muitas vezes incorporam impulsos baseados na violência do Estado em suas relações com outras pessoas.
Fania: Tomar conhecimento da justiça restaurativa foi uma verdadeira epifania para mim, porque foi ela que, pela primeira vez, integrou a advogada, a guerreira e a terapeuta que há dentro de mim. A questão agora é como implementar um processo que junta o aspecto da cura com o aspecto da justiça social e racial – como curar os traumas raciais que continuam a ser reencenados.
Angela: Penso que a justiça restaurativa é uma dimensão realmente importante do processo de viver da maneira que queremos viver no futuro. Dando corpo a ele. Temos de imaginar o tipo de sociedade em que queremos habitar. Não podemos simplesmente supor que de alguma maneira, magicamente, criaremos uma nova sociedade em que haverá seres humanos novos. Não, temos de iniciar já esse processo de criar a sociedade em que queremos habitar.
Este artigo foi originalmente publicado por YES! Media.
Postado em 18 de fevereiro de 2016
Pesquisa: Evânia Maria Vieira
Tradução: Nélio Schneider