Por Evânia Maria Vieira em 08/01/2019
Recentemente vi, nas redes sociais, um vídeo do Deputado Hélio Negão, em que ele declara ser “daltônico” para a cor da pele. Sinceramente acho que é um bom momento para ajudar as pessoas a reverem o conceito de “daltonismo para cor e raça”, pois este não tem possibilidade de se realizar numa sociedade apoiada na construção histórico-ideológica do conceito de “raça”. Há muito sabemos que não existe uma referência biológica objetiva para raça. No entanto, ela tem sido usada para manter as barreiras sistêmicas do racismo, perpetuando as desigualdades sociais e a violência. É preciso dialogar sobre isso.
Se você compartilha a ideia de que a cor das pessoas não importa, pois, afinal, somos todos humanos, talvez valha a pena ler um pouco mais e refletir sobre essa questão. Vamos imaginar que, para ignorar cor/raça nas interações sociais, você tem que negar a estrutura fenotípica do indivíduo, o legado histórico da escravidão e as experiências cotidianas individuais e coletivas de discriminação e racismo que o individuo sofre. Isso não lhe parece um tanto impraticável? Agora, se quiser aprofundar um pouquinho mais, convido a ler a entrevista de Osagie K. Obasogie, professor de Bioética no Programa Médico Conjunto e na Escola de Saúde Pública da Universidade da Califórnia, que desenvolve sua pesquisa em torno das disparidades raciais em saúde, do mito do “daltonismo” e em como as pessoas cegas “enxergam” a raça. Obasagie foi ganhador do prêmio inaugural John Hope Franklin da Associação Lei e Sociedade por estudos acadêmicos de destaque em 2011. Em relação a entrevista observo que os termos “acromatopsia” e “daltonismo” referem-se: à impossibilidade de distinguir cores e ao distúrbio da visão que impede a percepção correta das cores, respectivamente. Confira a entrevista:
Livro de Osagie Obasogie: se pessoas cegas não são acromatópticas, quem é? Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia (Hastings)
Uma pesquisa inovadora levou o Professor Osagie K. Obasogie, da Universidade da Califórnia (Hastings), a ganhar o prêmio inaugural John Hope Franklin da Associação Lei e Sociedade por estudos acadêmicos de destaque em 2011 e a escrever o livro Blinded by Sight: Seeing Race Through the Eyes of the Blind [Cegado pela visão: vendo a raça pelos olhos dos cegos], disponibilizado pela Stanford University Press. O Professor Obasogie, que tem um PhD em sociologia, bem como um JD, promove pesquisa que tenta preencher as lacunas entre o conhecimento acadêmico empírico e o doutrinal sobre raça. Na entrevista a seguir, ele discute suas descobertas, bem como algumas das implicações mais amplas de seu trabalho transdisciplinar.
[Q] O que o inspirou a seguir essa linha de pesquisa?
[A] Começou por volta de 2005, depois de assistir Ray, um longa-metragem sobre a vida de Ray Charles. Embora Charles tenha ficado cego muito cedo em sua vida, fiquei impressionado com a profunda compreensão que ele tinha de raça – o que é raça, como ela afetava sua vida e as vidas de outras pessoas. Depois de ver o filme, pesquisei para ver o que havia na literatura publicada sobre a compreensão que as pessoas cegas têm de raça. Presumi que as pessoas tivessem escrito algo sobre esse tema e queria aprender mais. No entanto, não achei nada. Não consegui encontrar ninguém que tivesse feito a pessoas cegas a simples pergunta: o que é raça? Quais são suas experiências com raça? Como você pensa sobre raça? Esse descuido é reflexo da suposição profunda que temos na sociedade de que raça é um fenômeno visual que pessoas cegas não são capazes de entender e que a raça não é uma parte significativa de suas vidas.
[Q] Com base na sua pesquisa, como as pessoas cegas “veem” raça?
[A] Exatamente como qualquer outra pessoa. Geralmente os respondentes cegos falaram de raça em termos de cor de pele, traços faciais e outros sinais visuais – exatamente como as pessoas com visão. Fique claro que minha pesquisa se concentrou em pessoas totalmente cegas desde o nascimento. Eram pessoas que não tinham visto coisa nenhuma, muito menos os sinais visuais que pessoas com visão associam a raça. Algumas pessoas cegas não namorariam alguém que não fosse da mesma raça, enquanto outras não querem morar em bairros considerados diferentes de onde uma pessoa da sua raça deveria morar. Um dos respondentes cegos disse que “A maioria das pessoas negras têm praticamente a mesma aparência”; outro disse que a pele dos negros “não é tão macia” como a dos brancos; outros disseram que negros e hispânicos “têm um odor característico”. Outros ainda lembraram como os familiares os habituaram a insultos raciais e a quem exatamente eles se aplicam. Porém, o tema comum entre os respondentes cegos é que eles entenderam raça visualmente.
[Q] As pessoas cegas não usam características não visuais como uma representação daquilo que não conseguem ver – como diferenças na voz e na inflexão vocal?
[A] Sim e não. A pesquisa mostrou que pessoas cegas com frequência desconfiam desses sinais não visuais. Alguns respondentes cegos disseram que já erraram o bastante confiando equivocadamente na voz, que não usam mais as diferenças vocais como indicador principal da diferença racial. A voz pode desempenhar um papel secundário, mas a raça é entendida em primeira linha em termos de diferenças visuais. Além disso, vários respondentes disseram que apreciaram a minha pesquisa porque fizeram experiências em que pessoas com visão presumiram que, por serem cegos, eles também seriam acromatópticos – em certo sentido, a raça não era importante para eles. Algumas pessoas com visão até pensaram que pessoas cegas são sortudas porque não teriam de lidar com o mundo caótico da raça.
[Q] Você pode aprofundar mais esse “mundo caótico da raça” e acromatopsia – a partir de uma perspectiva legal?
[A] Nossos tribunais, particularmente a Suprema Corte dos EUA, rumam para a acromatopsia, que é a ideia de que o governo não deve levar a raça em consideração em nenhum tipo de tomada de decisão – seja para propósitos benignos, benéficos, seja para propósitos nocivos. Especialmente na jurisprudência de proteção igualitária, o tribunal está começando a combinar o uso de raça pelo governo para fins de reparação – como, por exemplo, ações afirmativas para compensar danos passados que foram perpetuados contra um grupo – com o uso odioso de categorias raciais para subordinar um grupo. A ideia básica por trás da acromatopsia é que qualquer consideração de raça por parte do governo é ruim e que teremos uma sociedade boa, justa e equitativa quando formos além da raça. Para mim, porém, a questão é o que significa ir além dela? Será que vamos além dela, em certo sentido, quando o tribunal limitar a capacidade do governo de usar categorias raciais para lidar com as desigualdades persistentes? Ou o governo precisa reconhecer a raça para nivelar as condições do jogo? O que ainda deixa em aberto a pergunta se, dada a longa e patética história do nosso país com a raça, ir além dela seria mesmo possível? Fazer pesquisa com pessoas cegas é uma maneira de levar a sério a metáfora acromatóptica em termos de entender se seu pressuposto subjacente – que a cegueira produz uma compreensão reduzida de raça e inibe os antagonismos raciais – é uma matéria empírica acurada.
[Q] E qual é o seu ponto de vista?
[A] Penso que acromatopsia é uma ideia nobre, como o são também os unicórnios e as fadas do dente. Os dados mostram que ela simplesmente constitui uma maneira equivocada e, de fato, prejudicial de enquadrar como a raça atua na sociedade de hoje. Como está evidenciado em meu livro e na minha pesquisa, a raça não é importante só por ser visualmente óbvia, a soma de traços físicos. Ela é bem mais importante porque somos socializados para experimentar a raça de maneira particular, para dar significado a certos sinais, a orientar nossas vidas em torno de certas características e reagir a essas diferenças. E esse aspecto social é tão forte que até pessoas cegas “veem” a raça. Minha esperança é que os achados dessa pesquisa possam ajudar a informar e mudar a conversa sobre raça e levar a leis e políticas mais ponderadas que dirigem o foco para a dinâmica social da subordinação racial, mais do que presumir que a diferença racial é natural ou autoevidente.
[Q] Como isso se efetivaria nos tribunais?
[A] Espero que meu trabalho ajude a fazer os tribunais pensarem bem antes de usar a acromatopsia como uma ferramenta interpretativa. Antes de desistir da ideia de o governo usar categorias raciais para reparar os danos passados e contínuos causados às minorias, devemos avaliar até que ponto a sociedade ainda está reproduzindo as ideologias raciais e consolidando as hierarquias raciais de maneira que possam ter efeitos prejudiciais sobre esses grupos. Uma compreensão mais profunda dessas complexidades pode levar o tribunal a pensar duas vezes antes de renunciar à ação afirmativa ou outras iniciativas similares. Caso contrário, ele é cúmplice na manutenção da desigualdade. Formulando de outro modo, se gente cega ainda está vendo a raça e agindo de maneira problemática, você pode ter certeza de que gente com visão também está. Raça ainda é um problema central em nossa sociedade e não vamos conseguir ir além dele simplesmente enfiando nossa cabeça na areia e agindo como se ele não existisse mais. Sobre ciência e raça O estudo de Osagie K. Obasogie também examina o papel da ciência na construção de significados raciais e na explicação de disparidades raciais. Seu segundo livro foi contratado pela University of California Press: Beyond Bioethics: Towards a New Biopolitics [Para além da bioética: rumo a uma nova biopolítica] (em coautoria com Marcy Darnovsky). Citado de Do Blind People See Race? Social, Legal, and Theoretical Considerations [As pessoas cegas veem raça? Considerações sociais, legais e teóricas]” “Quando os pressupostos e as intuições que conferem forma à teoria legal, às preferências políticas ou à revisão judicial não são empiricamente acuradas, existe uma inconsistência ou um descompasso significativos entre o modo como a lei entende como a sociedade funciona e a maneira como ela realmente funciona. Isso pode levar a injustiça, particularmente contra comunidades vulneráveis. Sem considerar seriamente como as práticas sociais constituem a compreensão visual de raça, a ênfase que a lei dá aos sinais visuais pode obscurecer até que ponto as pessoas são socializadas para pensar em termos raciais, o que pode muito bem estar no cerne de muitas ações discriminatórias que ficam sem correção devido à ênfase atual que se dá à aparência dos querelantes.” – Osagie K. Obasogie, Law and Society Review, 2010.
Esta entrevista foi originalmente publicada no site da UC Hastings College of the Law San Francisco: http://www.uchastings.edu/news/articles/2013/09/obasogie-racecolorblind.php e traduzida por Nélio Schneider. Atualmente a entrevista está fora do ar, mas se quiser conferi-la na íntegra, faça contato.
* Evânia Maria Vieira, é bacharel em sociologia e política pela FESPSP, , especialista em medicina comportamental e instrutora de Mindfulness(UNIFESP). Pesquisadora autônoma sobre Mindfulness e Justiça Social e cocriadora do Grupo de Estudos Re[ver]ter Conceitos.